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terça-feira, 9 de setembro de 2008

Um Brinde À Amizade!


No meu primeiro dia de escola, uma menina pediu-me para ser sua melhor amiga. Nós duas estávamos usando um laço de fita no alto da cabeça e parecíamos duas pequenas cacatuas. "O que preciso fazer?" Perguntei, com receio. Já havia coisas demais acotecendo naquele dia, e eu precisava tomar cuidado. "Eu não sei!", disse ela. "Mas é bom ter amigas!"

E não é que ela tinha razão? Já era uma mulher sábia, aos sete anos de idade. Seu nome era Sandra, e eu imediatamente dei seu nome a uma gata que apareceu lá em casa, como sinal da nossa amizade e de como era bom sermos amigas. Com o tempo, a gata foi envelhecendo, mas quando no devido tempo, ela partiu deste mundo, a amizade sobreviveu e iluminou a minha vida como sempre fazem as amizades.

Eu, sinceramente, não sei como alguém pode viver sem ter amigos, pessoas com quem dividir seus segredos, esperanças e sonhos. E, também, pessoas com quem dividir humilhações, vergonhas e perdas.

Pessoas que riem conosco por nada, que cantam as mesmas canções, lêem os mesmos livros, ou nos dizem o que o resto do mundo não nos diria: que o novo corte de cabelo foi um grande erro.

Como vivem essas pessoas que se sentem satisfeitas e orgulhosas por serem tão independentes que declaram não precisar de amigos? Seria fingimento, algo que fazem por necessidade ao se verem sem amigos? Seria medo de fazer confidências, de se abrir? Medo de ser desavergonhadamente natural, num mundo que parece insistir em representar personagens e agir como se tudo estivesse bem, mesmo quando é evidente que as coisas estão longe de estar bem? Será que existe alguma dignidade em ser capaz de viver sozinho, em tentar ser uma ilha que não encosta em nada e em niguém?

Há anos atrás eu abandonei um bairro na capital paulistana extremamente curioso, onde todo mundo sabia demais da vida dos outros, para viver em Belo Horizonte uma cidade anônima para mim, onde eu passava por muitas pessoas todos os dias, sem conhecer nenhuma delas e sem que nenhuma delas me conhecessem. Era uma coisa assustadora, porque não conseguia sequer comprimentar alguém direito. É curioso quando as pessoas dizem que mineiros são hospitaleiros, que nada! Mineiros são desconfiados! Hospitaleiros sim, quando já te conhecem, quando você é apresentado por alguém já conhecido. Mas foram os grandes amigos que consegui fazer em BH que deram sentido à essa cidade e mantiveram minha sanidade.

O que nunca entendi é como muitas pessoas parecem considerar uma virtude o fato denão terem amigos. Havia um homem que morava numa rua próxima. Um homem grande e de olhos tristes, caminhava vagarosamente e com a coluna ereta pela rua. Não olhava para os lados e não comprimentava ninguém. Eu costumava conversar com ele, não por bondade ou generosidade, mas porque de onde vim era costume saudar os vizinhos e trocar algumas palavras. Ele ficava assustado e olhava à sua volta, achando que eu poderia estar falando com outra pessoa, mas tinha prazer em responder o que para ele devia parecer um interrogatório, quando eu lhe perguntava se ele preferia o frio ou o calor, a que programas de televisão ele assistia, e como era possível fazer aquelas flores de seu jardim crescerem tanto num solo urbano.

Ele respondia com facilidade às minhas perguntas, depois de entender que eu não pretendia ir viver com ele, mas nunca foi arrojado a ponto de perguntar alguma coisa a meu respeito. Talvez lhe faltasse coragem, ou mesmo interesse. Certa vez eu lhe perguntei onde moravam seus amigos. "Amigos?" Ele pronunciou a palavra como se eu estivesse falando de marcianos. Não toquei mais no assunto. Quando ele faleceu, não havia quase ninguém diante da casa dele quando o serviço funerário chegou. Eu ouvi os vizinhos dizendo que ele era um homem muito bom porque era muito reservado. Eu tive vontade de gritar que ele podia mesmo ter sido um homem muito bom, mas não por ser reservado, e sim, apesar de.

Conheci muitos lugares, e em todos eles eu sempre me emocionei ao parar para observar atos de amizade.
Crianças pequenas indo para escola, catando enormes folhas de bananeira para protegerem umas às outras quando tempestades tropicais ameaçavam molhar suas camisas imaculadamente brancas. Elas riam enquanto corriam, tentando escapar das enormes gotas de chuva. Dois velhos, tão absortos em seu jogo diário de xadrez que nem percebiam a movimentação do trânsito à sua volta. Eles sorriam e apontavam um para o outro, como se um deles tivesse feito uma jogada inteligente. Quatro mulheres gordas e cheias de alegria numa praia, obviamente amigas há décadas, esforçando-se para fazer os exercícios da ginástica em meio a uma multidão de mulheres bem mais magras, e mesmo assim elas não se sentiam deslocadas, pois estavam enfrentado aquilo juntas.

Meninos, que tinham inventado um estádio e estavam jogando um futebol maravilhoso em um terreno baldio, com seus casacos dobrados servindo de balizas do gol. Mulheres fazendo compras, ansiosas de braços dados, vibrando com a possibilidade de encontrar mais uma pechincha logo adiante. Golfistas explicando interminavelmente uma tacada um para o outro e demonstrando solidariedade quando ela, mais uma vez falhava. Dois casais, enxugando as lágrimas uns dos outros com grandes lenços coloridos. Jovens mães que tinham passado juntas pela fases de noivado, casamento, primeiro filho, preocupadas em proteger seus filhos do sol na praia, cada uma cuidando do filho da outra como se fosse seu.

Muitas vezes, eu gostaria de fotografar e guardar para sempre algo tão maravilhoso e enriquecedor como a amizade, e por isso , é uma alegria sentar e olhar algumas fotos que tenho. Isso prova, se é que precisa ser provado, que a amizade não depende necessariamente de pertencer ao mesmo grupo social ou ter os mesmos interesses.

Durante anos fui muito amiga de um rapaz que adorava boxe - um esporte que detesto. Como ele nunca tinha ido ao teatro, eu o levei para assistir uma peça, que ele disse ter achado interessante, mas que não o encantou. Na sua opinião, eles deveriam ter se animado um pouco, parado de reclamar e beber, e entrado num acordo. Depois disso, para ser justa, eu tive que ir assistir a uma luta de boxe. Detestei o que vi e achei que eles deveriam ter trocado um aperto de mão, saído do ringue e ido comer uma pizza juntos.

Nossa amizade sobreviveu porque tínhamos muitas outras coisas em comum, debatíamos os problemas, as partidas de xadrez, as histórias de detetive, a importância do ensino e a crença que a vida ia melhorar em vez de piorar. Ele amadureceu e eu também, passamos a nos ver pouco depois que nos formamos. Mas nos encontramos algumas vezes depois daquela época e as raízes da amizade continuam vivas, a sensação de que não era necessário explicar as coisas em contexto. Não há nada melhor. Nós nunca fomos namorados, e portanto, não há recriminações sobre quem abandonou quem.

De certa maneira, a amizade é um sentimento mais puro que o "amor" - o amor sexual de compromisso, que exige que se exclua os outros da relação.

Eu fico muito feliz por meus amigos terem muitos outros amigos além de mim, mas não sei se teria a mesma generosidade de espírito para com um amor. Eu ficaria muito perturbada e aborrecida - para não dizer arrasada- se soubesse que um amor pudesse ter outro amor além de mim. Não admira que a amizade seja mais fácil de se lidar. E ainda que, no caso de outras pessoas, a pessoa amada possa ser confusa, difícil de entender, irritante e sem juízo, os amigos são sempre emocionantes.

Minha mãe tinha uma amiga que eu achava muito esquisita e antipática. Elas tinham trabalhado juntas como cozinheiras de um grande cheff e eram amigas de longa data. Essa mulher era magra e vaidosa, azeda , enquanto minha mãe mulher encorpada, elegante, alegre e generosa, era o contrário da outra. A amiga da minha mãe estremecia diante da idéia de uma criança lhe estender uma mão lambuzada, num gesto de afeto, mas minha mãe a valorizava como amiga. Juntas elas relembravam os tempos de trabalho árduo na cozinha e de quando estudavam com os livros que haviam comprado com o dinheiro de um prêmio que receberam.

Era animador observá-las, pois, apesar das grandes diferenças sociais que pareciam existir entre as duas, elas eram apenas duas garotas inocentes, a julgar por seu estado de espírito, e as marcas de idade pareciam sumir de seus rostos enquanto elas falavam do passado, do presente e do futuro.

Eu me lembro da noite em que minha mãe recebeu a notícia de que sua amiga havia falecido. Ela não foi dormir. Passou a noite sentada diante da janela, olhando para além, nem seu marido, nem sua filha conseguiam consolá-la. "Ela era minha amiga, nós nunca precisamos dar explicações uma à outra."

Eu não questiono que a amizade seja mais cega que o amor. Eu não tenho idéia, por exemplo, da aparência dos meus amigos. Se você me perguntasse, eu teria dificuldade para descrevê-los, pois, por serem meus amigos, tudo o que vejo são seus rostos sorridentes, seu entusiasmo, esperando ansiosamente para ouvir ou falar alguma coisa, achando que eu também sou uma boa notícia. Eu não poderia dizer que um é um homem careca ou que outra é uma mulher deslumbrante, elegante, que aparenta ser dez anos mais jovem do que realmente é. Essas coisas não fazem parte da amizade. Eu não saberia dizer o que meus amigos estavam vestindo na última vez que os vi. É a companhia, o pôr a conversa em dia e a capacidade de compatilhar, a abreviação disso tudo, que têm valor para mim, a ponto de excluir todo o resto.

Eu fico profundamente emocionada com minhas lembranças de momentos melhorados e maus momentos esquecidos graças ao mágico efeito de cura da amizade. Que a alegria de amizades, possa sempre alegrar o seu coração.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Homem e o Caiçara



Como sempre havia sido cinco dias de escritórios, reuniões e salas frias. No fim-de-semana, cadenciando ainda cansaços da viagem, o homem macilento consumia-se em desejos sentado na areia da praia. O mar cantarolava, em cada onda um verde novo em seus ouvidos. Ele observava o coqueiral, os olhos no topo das folhas de coqueiro numa ansiada façanha inatingível. Arrepiava-se sob a verticalidade sublime daquela altura vegetal e primitiva.
Por perto um caiçara curioso reparava vestígios opressivos no corpo daquele homem. Aproximou-se e lhe perguntou sem rodeios:
- Que é isso em seus cabelos?
Absorto no coqueiro, o homem se espantou.
- Falou comigo?
- Se me permite, coisa estranha em seus cabelos, que é isso?
- Ah, é uma fresta da consciência de zelos abafados, rumos esquecidos e ontens ainda aguardados.
- E o que é isso em seus pés? - insistiu o caiçara.
- São caminhos interrompidos por sapatos civilizados - dizia o homem com a voz trêmula - São dedos atrofiados por assentos do progresso.
- E isso em suas mãos? - perguntou o caiçara chegando mais perto.
- São acenos invisíveis pela fumaça, carinhos inibidos pela ameaça de compromissos, dedos enrijecidos por botões da atualidade, são castidades esbugalhadas.
- E sua boca, toda encolhida, o que há com ela?
- São risos cicatrizados - falou vacilante o homem - São ideais lacrados, é o gosto da mudez.
O caiçara encarou-o fixamente e disse impetuoso:
- Seus olhos são cinzas! Mas têm desejos fortes...
- É a constante vontade de aprender a subir num coqueiro - disse o homem falseando a voz - Você me ensina a subir num coqueiro? Eu tenho anseios por alturas primitivas.
Então, o caiçara foi se afastando lentamente e começou a subir no coqueiro, a subir, a subir.
Enquanto isso, soltavam-se dos olhos do homem duas gotas cintilantes em direção à boca.