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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A MENINA



Não tenho lembranças... não posso carregar gato de rua para casa... Tenho fome e tenho sede... Havia uma lua a brilhar solta em minha janela e a cativar meus olhos. Hoje apenas neblina, nuvens negras... 
Não tenho lembranças, a parede do esquecimento está repleta de postais e fotos envelhecidas, não tenho mais o abraço apertado, voz na garganta, porto seguro... Hoje sei que ando a ermo a desenhar papéis; tá tudo cheirando cinzas, velório, abandono... Ainda havia um tom prata sobre o sorriso meigo da menina, uma teia encaracolada de vida descia dos cabelos negros: ela só queria viver ! Não tinha lembranças de outras vidas, de leite materno, de sol de fevereiro passado... 

Não. A menina não desconhecia os olhos duros da cidade, ela não se acostumava; adoecia, fragilizava, ela também gripava... e de um pulmão choroso e cheio de grito pedia PAZ, de seus olhos doce sabor de lua sob um lago azul. Ela era menina e já desenhava alguns de seus papéis; era como se a vida lhe abrisse em linhas apagadas a lhe oferecer canetas, penas, lápis de cor ... era a vida lhe dizendo: VIVA ...

No começo da noite, num canto tranquilo do céu, uma mãe, estava a chorar sobre os cabelos da menina a lhe oferecer a benção ... a lhe lavar os pés e cantar cantigas de ninar ... Ainda assim, a fina flor não se continha, brilhava ao se misturar com o sol a se lambuzar de lua: era o verde suave da esperança do mar azul a desejar o marinheiro de branco e braços tatuados de vento e o barco a domar. A vida lhe agradecia, descobria-se aos seus olhos os panos da hipocrisia e a menina via a mentira a se enredar pelas bocas-de-lobo e descer esgotos abaixo como se ainda não fosse rodeada de tubarões a devorar surfistas ou Deus a punir desejos dos olhos de quem vê gato, lua, beijo de namorado, tiro no escuro.

Ela não entendia o comércio da Terra, as cercas de arame farpado, as armas de fogo ... Ela não tinha lembranças ... As reticências dominaram seu coração de papel e feito a canoa deslizar no silêncio do rio, ela só, perante o imenso real havia o eco de vozes que não eram suas e num voo por sobre um muro cruel a se despencar por entre freiras e padres, doutores senhores do brilho claro do pudor babaca das salas de confissões ...

Ela não tinha tempo para explicar ao mundo seus sonhos límpidos; seus sentimentos no crepúsculo; o entardecer de outono sobre os seus dias... não; ela não explicava a espectadores mórbidos o brilho das estrelas, o curto percurso do cruzeiro do sul, do pequeno céu que lhes cobria as cabeças, pois seu teto sempre foi mais, sua vista sempre viu mais, e quanto as fronteiras ... Estava o céu a lhe oferecer escadas, nuvens de algodão e chuva fina, era chegado o momento da colheita e dos olhos da menina saltava um mundo de esquecimento e estrelas frias, era o mundo a lhe pedir perdão, a lhe pedir compreensão e ela, beija-flor por entre jardins sagrados, a esculpir clareza na face da escuridão, a molhar de mel o movimento das estradas que já não mais passavam, da queda d’água a lhe minar imensidões ... À noite, quase madrugada, tranquilidade e intranquilidade mesclavam-se esquecidas na parede do quarto ou por sobre o travesseiro...

Não tenho mais lembranças do brilho da menina, não tenho mais lembranças do sorriso doce da menina, contornava a menina uma luz calma de sol, no cálido sol de maio em Belo Horizonte.

Era preciso apagar as letras, diminuir as maiúsculas, anular tabuadas, era urgente o fim da química viciosa a misturar elementos explosivos por entre Hiroshimas: o mundo sempre após o caos se envergonhava - a menina desenhava seu papel e nem era madrugada.

Esse era o recado. Era o sol a me desejar o corpo bronzeado. Era eu a vagar no vento leve, era eu a abolir as regras gramaticais, a ignorar a estética, a febre, o cemitério da Colina, era eu a vomitar nojo, solidão e medo. Era eu a me fazer vírgulas, a catar estrelas do céu, aprisionar brisas, era meu coração a lhe buscar, arco-íris, pôr-do-sol colorido do alto da grande montanha, linha de ferro, maria-fumaça, Minas Gerais demais pra caber tudo de dentro que na menina pulsava ... eram veias, punhos, vários corações, voos, pedaladas de bicicleta, canções no violão, composições ... Era época de namoro, nas praças havia enforcamentos, bala perdida, invasões de privacidade ... mas a menina amava, feito cantor e violão, feito peixe e mar, feito Vênus e todo o sentimento, feito José e Maria, Sansão e Dalila, Francisco e Clara, Sartre e Simone de Beauvoir,Jean Genet, Camille Claudel, Clarice Lispector, Leopoldina, Leila Diniz, Bethânias, Cazuzas, Caetanos, Chicos  ...

Como se bocas fossem bocas e beijos cheios de girassol, jipe em estrada, Lô Borges, Flávio Venturini, corpo, sol, torpor, frio na barriga, pouso de asa-delta, voo de balão ...
Tudo esquecido.

Ela não se lembrava ... ela vivia ... brilhava ... amava...
Sofria ... Anna ... Nanna ...
Annynha... Nannynha... Joannynha... sorria ...
Ela era assim, sempre em formação a pular cordas, abrir portas, pulsar, pulsar
brilho intenso, lua nova
cheia de tanto minguar
leite ao sol todo poderoso
agora a namorar lua e estrela guia em céu
cinza, azul inquieto, inquieto tem um verão em Salvador
tudo eram disfarces
tudo maquilagem
Cartola na vitrola: Aurora, Alvorada
tudo acontecimentos
Eu a pedir benção
a menina a brilhar esquecimentos
a brilhar cada fibra de um sol
vermelho a simbolizar inverno frio
a aquecer lareira e aquecer fogueira
era a pequena menina a não ter fim
a não se saber
a pulsar
a tremer
a colher rosas
a colher espaços
claros e escuros de mim
a pulsar bolha de sabão
a romper porta de paraíso
a queimar notas de reais
a vagar ... a vagar ...
a tremer na irrealidade
tudo vivo e morto em mim
a menina ousa olhar da janela
corte, brilho
sol de primavera
era a mulher, moça, menina
curiosa a brindar alegria
travessura, acontecimento
travessia
Milton Nascimento...