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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Cruz e Sousa


        Tem poetas onde interessa mais a obra, artistas cuja peripécia pessoal se reduz a um trivial variado, sem maiores sismos dignos de nota, heróis de guerras e batalhas interiores, invisíveis a olho nu. Tem outros, porém, cuja vida é por si só, um signo.
        O desenho de sua vida constitui, de certa forma, um poema. Por sua singularidade. Originalidade. Surpresa.
        Cada vida é regida pelo astro de uma figura de retórica. Certas vidas são hiperbólicas. Há vidas-pleonasmo. Elipses. Sarcasmos. Anacolutos. Paráfrases.
        A figura de retórica de Cruz e Sousa é o oxímoro, a figura da ironia, que diz uma coisa dizendo o contrário.
        Que outra figura ajustaria a este negro retinto, filho de escravos do Brasil imperial, mas nutrido da mais aguda cultura internacional de sua época, lida no original? Quais formas exprimiriam a radicalidade com que Cruz e Sousa assumiu a via poética, como destino de sofrimento e carência a transformar beleza e significado?
        Na poesia, na realização enquanto texto, Cruz e Sousa superou o dilaceramento entre os antagonismos de ser negro no Brasil (mão de obra) e dispor do mais sofisticado repertório branco de sua época (o "espírito").
        Não deixa de haver mistério no fenômeno de serem negros, oriundos da raça mão de obra, o maior prosador da literatura brasileira, Machado de Assis, e, sob certos aspectos, nosso mais fundo e intenso poeta. Mas "na arte, não há segredos, só mistérios", já disse Gilberto Gil. 
        O post de hoje vem em homenagem aos 150 anos desse poeta que, fosse um negro norte-americano, teria inventado o blues. Brasileiro, só lhe restou o verso, o soneto e a literatura para construir a expressão de sua pena. 

Eternidade Retrospectiva

Eu me recordo de já ter vivido,
Mudo e só por olímpicas esferas,
Onde era tudo velhas primaveras
E tudo um vago aroma indefinido.

Fundas regiões do Pranto e do Gemido,
Onde as almas mais graves, mais austeras
Erravam como trêmulas quimeras
Num sentimento estranho e comovido.

As estrelas longínquas e veladas
Recordavam violáceas madrugadas,
Um clarão muito leve de saudade.

Eu me recordo d"imaginativos
Lugares liriais, contemplativos
Por onde eu já vivi na Eternidade!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011




Folheando as ruas da cidade
Achei!
Entre as margens mortas das calçadas,
no tapete do asfalto negro
Um leito arado,
A faixa branca
para se plantar poesia.
Assim, semeei muitas letras.

E tomara que estas, quando palavras,
Se enrosquem todas
Nos pneus dos carros,
ocasionando um irreversível acidente...
Literário